Felix Valois

Os mais novos nunca viram um lança-perfume. Dou-lhes as definições que o dicionário Houaiss fornece para esse substantivo masculino: “1 – Bisnaga metálica ou de vidro, usada sobretudo nos festejos carnavalescos e que, carregada de éter perfumado e à base de ar comprimido, lança seu conteúdo a relativa distância quando destampada. 2 – O conteúdo dessa bisnaga”. Carnaval sem confete, serpentina e lança-perfume não era digno desse nome. Hoje restaram apenas os dois primeiros e olhe lá. Já não existem bailes nos clubes e, pelo que vejo, nas ruas as marchas, ao som dos instrumentos de metal, foram substituídas por toadas de boi e, por incrível que pareça, até por essa coisa que alguns insistem em chamar de música e que a Bahia exportou com o nome de axé.

Já não se encontram lança-perfumes. A juventude há de se indagar: “Se vocês, velhos, usaram, por que não podemos nós desfrutar do lança-perfume”? Mais do que justa a perplexidade. Era bom, era gostoso, agora não é mais. Foi proibido. Pior: virou crime. É isso mesmo. A eterna mania de criminalizar até jogo de bolinha, colocou o éter no elenco das substâncias que podem causar dependência física ou psíquica. Portanto, nem pense em usar um lança-perfume para tirar graça lançando um jato nas costas de uma donzela. Você corre o risco de ser preso por uso de substância entorpecente e, dependendo das circunstâncias ou do humor de quem o prender, pode ser acusado até de tráfico de drogas, com todas as consequências que a nossa legislação ridícula criou a partir daí.

É certo, tenho de reconhecer, que muitas vezes a brincadeira perdia sua ingenuidade. Nunca o fiz (e nem proclamo isso com muito orgulho, como se fosse uma vitória excepcional), mas vi alguns colegas fazerem o que se chamava “cheirar lança-perfume”. O conteúdo da bisnaga era jogado num lenço que, uma vez ensopado, era levado ao nariz. O efeito era imediato. O infeliz desmaiava ou ficava “doidão”, numa reação que era tão rápida quanto efêmera. De qualquer sorte, perigosa, porque os médicos eram unânimes em reconhecer que, dependendo do organismo, tal prática poderia levar à morte.

Daí, talvez, a proibição, que, apesar de assim justificada, não perde a similaridade com a história do marido traído que mandou jogar no lixo o sofá em que encontrou a mulher na prática adulterina. Fórmula singela e de duvidosa eficiência quanto a evitar a repetição do mal feito. Se não é saudável nem recomendável cheirar, nunca ouvi dizer que alguém tenha corrido qualquer risco pelo simples fato de lançar um jato do tal éter perfumado. Quando muito um eventual incômodo nos olhos, se ocorria a eventualidade de serem eles atingidos.

Mas agora, parece, já não tem jeito que dê jeito. O lança-perfume foi definitivamente banido, ficando apenas como lembrança dos velhos carnavais e dos cartazes que os enfeitavam. Eram imagens de pierrôs, colombinas e arlequins, devidamente caracterizados, aparecendo ao fundo a imagem do tubo metálico no qual a Rhodia, principal fabricante, vendia seu produto. Que era caro, diga-se de passagem. Para mim, absolutamente inacessível, de tal sorte que não posso deixar de revelar a inveja que eu sentia quando via alguém com o cilindro na mão, a bom espargir o perfume. O cheiro era agradabilíssimo e os salões ficam infestados por ele, criando memória associativa entre os bailes e o lança-perfume.

Tudo coisas do passado, que não me atrevo a dizer melhor ou pior, pois só tenho a certeza de que era diferente. Era possível cantar “o teu cabelo não nega, mulata, porque és mulata na cor” sem ser acusado da prática do crime de racismo. Também era possível usar fantasias e máscaras, sem que surgisse um mentecapto a tentar enquadrá-lo na prática de terrorismo, porque “nas trincheiras da alegria o que explodia era o amor”. Havia batalhas, é certo, mas eram de confete e ninguém carecia de usar colete à prova de balas para delas sair ileso e ir curtir a ressaca tranquilamente em casa.

Velhos carnavais! Segunda-feira gorda, na Praça da Saudade, a grã-finagem baré se reunia no Atlético Rio Negro Clube, trajando smokings ou summers, com as madames ostentando cetins e sedas, tudo devidamente ornamentado por pedras, paetês e lantejoulas. A uma quadra dali, na esquina das ruas Leonardo Malcher e João Coelho (hoje rebatizada como Constantino Nery), o Olímpico Clube, mais popular e mais aberto, fazia a imperdível “Despedida da Kamélia”, sem a frescura do traje a rigor. Mas essas distinções terminavam às seis horas manhã, quando, encerradas ambas as festas, saíam todos, rionegrinos e olímpicos, descendo a Eduardo Ribeiro para a concentração final, que se dava na Praça da Polícia.

Como disse, era apenas diferente. Se usar lança-perfume virou crime, não o virou o fato de um ministro do Supremo Tribunal Federal confessar publicamente que exacerbou a pena de um condenado só para evitar a ocorrência da prescrição. Imoral e ilegal. Criminoso, não, que, entre os deuses, isso é inconcebível. Basta apenas cantar com o poeta: “Acabou-se o nosso carnaval/Ninguém ouve cantar canções/Ninguém passa mais cantando feliz/E nos corações só saudades e cinzas foi o que restou”. Pelo menos isso.

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