Por Carlos Santiago

Na escuridão escuto ruídos, cânticos entoados por sentimentos alegres e com muita ternura. Um forte cheiro que me traz euforia, vento no corpo, barulhos repetidos, balanços contínuos, muitas vozes… uma sensação jamais vivida.

De repente, a luz! Vejo imagens, vejo bocas, encontro rostos, roupas coloridas, muitas mulheres, muita maternidade, nada de paternidade e várias crianças diferentes de mim. Uma boca encosta os seus lábios carinhosos e deixa o meu corpo ainda mais aquecido. A dona da boca tem um sorriso cativante, cabelos ralos e negros, pele branca, braços fortes, é uma mulher com altura que não se dobra para embalar redes.

As palavras dela eram sempre dirigidas ao menino com um tom amoroso, com saudações do dia, com músicas que ajudavam na alimentação da alma e do corpo. Também havia a repreenda ao pequeno pela maneira que se comportava no fundo da velha rede, na hora de receber a comida, no momento da refeição. Era uma mistura de sentimentos divinos de mãe e de sobrevivência do filho.

A casa era de madeira e com grandes janelas. A palha a cobria toda, deixando o sol entrar pelas suas pequenas imperfeições, o que a tornava ainda mais agradável. As enormes brechas nas paredes de madeira não escondiam qualquer segredo da vizinhança, mas isso pouco importava, pois quando a noite chegava e o fogo das lamparinas tornava-se o centro das atenções das crianças, tudo era alegria.

Na rede, de frente pra janela, o menino se deparava com um quintal de enormes árvores e muitos frutos que serviam como alimentos em dias difíceis. Eram sempre dias difíceis! A luta pela comida era uma missão de vida. As árvores abrigavam pássaros que todos os dias externavam suas alegrias com sons agradáveis; as cigarras anunciavam a sua morte e a chegada de um novo tempo, uma nova estação, tarefa das jovens cigarras, o som delas dava continuidade ao som da vida.

Para além do terreno, havia casebres, moradias insalubres e ruas esburacadas que escorriam água com mau cheiro e muito mato. Lá, o andar era substituído pelo pular. Todos faziam esse mesmo movimento como se fosse uma brincadeira de criança. A área era de uma antiga lixeira da cidade de Manaus. A pobreza humana residia naquele lugar, onde o homem se misturava com o lixo. Era o local das aves famintas, das mães amadas e abandonadas, um espaço de alegria e de tristeza. Lá o homem pobre ia se adaptando ao ambiente, num pedaço de mundo, quase esquecido, que não impedia a sua plena reprodução.

Era o ano de 1970, e o menino com quatro anos, ainda não entendia o significado daquela realidade, os conflitos humanos e os mistérios da vida. Num mundo onde tantos lutam para saciar as necessidades básicas; outros buscam mais poder e riqueza, por meio de guerras, de ódio e de ganância.

Hoje, adulto, continuo fascinado ainda mais pelo eterno amor das mães pelos filhos, mesmo em situações adversas, elas resistem. Um carinho de mãe é o melhor remédio para suportar os absurdos e as tristezas do mundo. Por isso, Dona Maria Irene, minha mãe, nunca se esqueça nenhum segundo da minha gratidão e do meu amor por você.

Sociólogo, Analista Político e Advogado.

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