Felix Valois

No dia 16, anteontem, dona Lucíola, minha mãe, teria completado cento e sete anos de seu nascimento. Ainda que tivesse alcançado tamanha longevidade, seus filhos, netos e bisnetos não lhe teriam podido comemorar o aniversário. A velhinha teria morrido de vergonha quando soubesse o que, naquela data, aconteceu em seu país. E todos teríamos chorado pelo seu passamento, da mesma forma como estamos aos prantos, até agora, pela supressão definitiva do que ainda pudesse haver de dignidade no grupo que há mais de duas décadas tomou o poder na República.

Pela televisão, vi a posse de Lula na chefia da Casa Civil da presidência. Um espetáculo deplorável! O cinismo se mesclou com a hipocrisia e os atores da chanchada mal podiam disfarçar o artificialismo de seus papéis na cena. Veio-me à mente (era impossível que não viesse) a velha dicotomia licitude/honestidade, da qual ouvimos falar desde os primeiros anos da faculdade de Direito. Os romanos a formularam assim: “Non omnes quod licet, honestus est”. Em português: “Nem tudo o que é lícito, é honesto”. Era precisamente o caso. Se Dilma tem o direito de escolher quem bem entender para compor seu ministério, fê-lo, formalmente, de acordo com a ordem jurídica. Estaria configurada a licitude. Acontece, porém, que todos sabem igualmente que “o direito é o mínimo ético” e, sob esse aspecto, o ato da presidente está longe de encontrar abrigo no âmbito maior da honestidade.

Meu neto Fábio Junior (tem ele apenas quinze anos) não conseguia esconder sua revolta. Até pelo zapzap, ele me cobrava com veemência uma posição: “Vovô, o que tu pensas disso?”, foi a mensagem que recebi. Não lhe respondi. Não era possível fazê-lo no momento. Meu coração também estava em frangalhos, trucidado que fora pela ignomínia dos que jamais pensaram no Brasil como a grande pátria que é. Cuspiram-lhe na face. Jogaram chumbo no pavilhão nacional, conspurcando-o com a mancha da insensatez. Eu brincava com a Heleninha. Olhava para a alegria e para a inocência de seus três anos. E chorava. Aquela pequena brasileira nunca fez nada para merecer tamanha violência. Por que, então, lhe pisoteavam a infância? Por que a tratavam com tamanho desrespeito? Era como se eu a visse, a ela e a todas as crianças do meu país, violentadas brutalmente por uma horda insensível de cruéis meliantes. Não pode ser assim, não tem por que ser assim, era o único pensamento que conseguia formular. Não lutamos contra a ditadura para chegarmos a isso. Não, mil vezes não. Os que também participaram dessa luta (pelo menos em tese) não tinham o direito de trair a confiança de seus compatriotas, principalmente dos que morreram sob tortura.

“O Brasil é uma terra de amores, alcatifada de flores, onde a brisa fala amores, nas lindas tardes de abril”. Esse era o texto inicial de um poema que abria uma peça encenada pelo Teatro de Cultura Popular, da União Nacional dos Estudantes, nos primeiros anos da década de sessenta do último século. Era a voz da juventude, no seu clamor pela construção de uma sociedade justa e igualitária. Não foi ouvida. Por terrível ironia, precisamente em abril de 64, o golpe de estado rasgava a Constituição, pisoteava as nossas flores e tornava proibido falar de amores. Foram tempos de monstruosa obscuridade e o que nos restou foi a chama da esperança. Esta nunca se apagou e, com Thiago de Mello, repetíamos: “Faz escuro, mas eu canto”.

Como alguém, que tenha vivido aqueles tempos, pode ter esquecido isso? Que deformidade patológica há de ter provocado esse olvido? Ou, o que agora me parece provável, o verdadeiro sentimento de brasilidade nunca existiu nessa gente. Mais do que uma probabilidade, o grau de certeza é quase absoluto. De que outra forma explicar o comportamento de Lula e Dilma, desde que chegaram ao poder? A este elevados sob o pálio de uma bandeira de honestidade e de renovação, fizeram tábua rasa da primeira e o único que conseguiram renovar foi a forma de autoenriquecimento.

E agora, Lula, o grande e arrogante capitão da era das bolsas e das esmolas, exibe e escancara sua face covarde. Que outra coisa pode ser, senão covardia, essa atitude de se esconder em um cargo para tentar dificultar o advento da consequência de seus atos? Não é assim que age um líder. Esse mesmo Lula, que nunca tinha ouvido falar do mensalão, já revelava sua poltronaria quando seu companheiro José Dirceu, irremediavelmente flagrado na prática da ilicitude, foi sumariamente afastado do Ministério que ocupava, negando-lhe o seu chefe o recurso de que hoje lança mão sem nenhum escrúpulo.

Castro Alves manifestou toda a sua indignação com o tráfico de escravos, bradando: “Mas é miséria demais, da etérea plaga/Levantai-vos, heróis do Novo Mundo/Andrada, arranca esse pendão dos ares/Colombo, fecha a porta dos teus mares”. Como o bardo se expressaria agora? Brasileiro e patriota, seu túmulo deve estar revolto por não permitir que se erga outro clamor libertário. Resta-nos pedir desculpas aos heróis da Pátria. Honremos-lhes as memórias, assegurando que vamos fazer o Brasil retornar ao bom caminho. Asseguremos que Lula, Dilma e o PT entrem para a História como traidores da Pátria, a fim de que todos os jovens, como Fábio Junior, mantenham viva a chama do patriotismo e que todas as crianças, como Heleninha, saibam que seus compatriotas estão alertas para evitar nova agressão.

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