Felix Valois

Já me disseram que esta coluna está parecendo mais um obituário. Com toda humildade e aceitando a crueldade da constatação, tenho que concordar. É que essa tal de morte me tem pregado poucas e boas. Agora mesmo, nesta semana, achou de me levar a irmã caçula, a Maria do Carmo, que todos chamávamos de Mimita. Porcaria de câncer. A causa não importa. O resultado é sempre o mesmo: uma dor profunda, indefinível, que aniquila, tortura e martiriza. Choramos, é verdade. E o verter das lágrimas parece que alivia a sensação de vazio. Ledo engano. A saudade cobra forças infinitas e se vai acumulando em medidas que a física desconhece porque não é possível lhes traçar a fórmula.

Aliás, como eu já tive oportunidade de dizer em outros tempos: saudade é uma palavra complicada. Começa que os especialistas dizem não ter ela correspondência exata em nenhuma outra língua, viva ou morta. No latim, por exemplo, de onde é originária, sua raiz é “solitate”, que está mais para “solidão”, tanto que desembocou na “soledad” espanhola.

Os dicionaristas a definem vagamente, com aquela nebulosidade inerente ao próprio conceito. Assim é que para Aurélio ela é “lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las; nostalgia”, enquanto, para Houaiss, saudade é “sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, uma coisa ou um lugar, ou à ausência de experiências prazerosas já vividas”.

Mas parece não ser só isso, pelo menos se levarmos em conta a criatividade do cancioneiro popular. Já houve quem dissesse que “a saudade é calculada em algarismos também: distância multiplicada pelo fator querer bem”. E há o caso do trovador que fez seu “rancho na beira do rio”, aonde foi morar com seu amor. E prossegue, triste: “Mas agora meu bem foi embora/foi embora e não sei se vai voltar/E a saudade nas noites de frio/em meu peito vazio virá se aninhar”. O refrão chora ao som plangente do violão: “A saudade mata a gente, morena/A saudade é dor pungente, morena”.

É, não dá para ficar só nos dicionários. Não contêm eles, nem poderiam conter, esta singela afirmativa: “Saudade, dor que é remédio/Remédio que aumenta a dor”. Isso para lembrar que, no assunto, pesado mesmo pegou o grande Chico Buarque de Holanda que assim definiu a tal saudade: “É arrumar o quarto de um filho que morreu”. Que coisa brutalmente grandiosa. Que experiência terrível há de ser e quantos poderão a ela resistir!

Porque, em matéria de filhos, não é nem necessário que ocorra essa coisa sórdida que nos traz a inimiga das gentes. É suficiente o curso da própria vida. Os filhos crescem e se vão. É a ordem natural das coisas. Sempre foi assim e, suponho, assim será até à consumação dos séculos.

Que seja normal. Eu aceito o argumento. Mas a normalidade não tem o condão de preencher o vazio dos espaços que deixam e onde outrora brincavam e brigavam, lépidos e fagueiros. Fica só a saudade. De novo ela, persistente, onipresente, diáfana, mas implacável, a ditar as regras de sua ditadura sentimental.

Que fazer? Nada. Nada existe que a humana condição possa fazer diante dos fatos da vida. O que não tem remédio, remediado está, é truísmo de sabedoria secular. Por isso, conviver com a saudade é, talvez, o caminho único que resta para aqueles sobre os quais ela resolve se impor. Lágrimas, muitas ou poucas, ajudam nesse comportamento. Não são bálsamo, porque não têm efeito anestésico, mas, pelo menos, servem temporariamente como válvula de escape.

Mas, de que me adiantam todas essas divagações? O certo é que a Mimita se foi e com ela sua alegria de viver. Avançada para seu tempo, encarou com destemor as convenções sociais e impôs, com invejável sobranceria, seu próprio estilo de vida. Pouco se lhe davam os cochichos e as maldades, que sempre vêm à sorrelfa e insidiosamente. Ela era a Mimita, mãe da Mônica, do Junior e do Neto, família que constituía a maior parte da torcida do Vasco da Gama, nestas terras amazonenses.

Era também advogada. Quase digo “como todo mundo”, lembrando o professor Sebastião Norões. Mas o que importa isso? Se muitos são os chamados, poucos são os escolhidos, como me parece ter ouvido em alguma referência bíblica, matéria em que minha ignorância mais se agiganta. O que quero significar é que, nas lides jurídicas, Mimita não era mais uma na multidão. Não. Longe disso. Era guerreira, lutadora e vencedora, empunhando sempre o estandarte da ética.

Saudades, minha irmãzinha. Principalmente quando recordo a cena pungente da morte de nosso pai. Arquejando, pouco antes de expirar, ele te abraçou (tinhas então só sete anos) e disse: “Tenho muita pena de te deixar”. E partiu. E agora tu partiste também. E nós todos sentimos muita pena por nos teres deixado. Pena cruel e perpétua e, por esses dois qualificativos, inconstitucional. Só aí conseguiste falhar na aplicação do Direito.

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