ESTADÃO – Nos dias que se seguiram à deposição de Evo Morales, o primeiro presidente indígena do país, irromperam profundas tensões étnicas que há muito tempo dividem a nação. Morales foi substituído por uma presidente de origem europeia, e isto provocou fortes ressentimentos.

Os policiais arrancaram as insígnias indígenas dos seus uniformes. Os manifestantes queimaram a bandeira indígena. E a presidente interina inicialmente formou um gabinete sem nenhum membro indígena. “Nós nos sentimos ameaçados”, disse Juan Acume, um camponês do grupo indígena Quechua, perto de uma barricada de protesto levantada na principal rodovia da Bolívia. “Eles não nos representam; eles nos rejeitam, nós, os indígenas”.

Os cerca de 14 anos de Morales no poder representaram um avanço para os 75% dos bolivianos de origem indígena ou que se identificam como membros de grupos indígenas. Mas ele também reforçou sua base de apoio com apelos explícitos à identidade racial, considerados polarizadores por muitos bolivianos. Agora ele se asilou no México, e os seus partidários temem perder os ganhos políticos e econômicos.

Seus temores aumentaram quando Jeanine Añez Chavez, senadora da oposição, rapidamente se proclamou presidente interina do país, no dia 12 de novembro, prometendo unir a nação e convocar novas eleições em janeiro. Mas, no dia seguinte, quando ela apresentou seu gabinete provisório, nenhum dos 11 ministros se identificava como membro de um grupo indígena. Depois de muito clamor, ela nomeou um ministro da cultura indígena.

A retomada dos rituais católicos em eventos públicos, outra medida da nova presidente, também causou desconforto porque a Constituição define a Bolívia como um estado secular. Alguns grupos indígenas associam o catolicismo na política aos governos conservadores anteriores que por muito tempo os trataram como cidadãos de segunda classe.

Nos anos anteriores, Añez publicou mensagens no Twitter zombando da cultura do povo indígena chamando os seus rituais religiosos “satânicos” e Morales de “pobre índio”, Desde então ela apagou os tuítes, mas não antes de eles se espalharem pelas redes sociais. Então foram suplementados por uma enxurrada de publicações racistas, atribuídos à própria Añez e espalhados pelos partidários de Morales, segundo um grupo de mídia de monitoramento, o Observatório “Bolívia Verifica”. Añez denunciou os falsos tuítes, mas não respondeu à pergunta se os que foram atribuídos a ela eram reais.

No dia 15 de novembro, em alguns dos momentos de maior violência que convulsionaram a Bolívia nas últimas semanas, a polícia atirou gás lacrimogênio e disparou tiros de verdade contra partidários indígenas de Morales que tentavam fazer uma marcha em Cochabamba, cidade a cerca de 400 quilômetros a leste de La Paz. Pelo menos nove pessoas morreram e dezenas ficaram feridas.

As tensões entre a população indígena e a elite dirigente de origem europeia datam dos tempos coloniais espanhóis. Diego von Vacano, um cientista político boliviano da Texas A&M University, comparou as relações tradicionais de raça existentes na Bolívia ao “sistema do apartheid na África do Sul, porque os indígenas são considerados cidadãos de segunda classe”.

“Evo foi de grande importância porque se levantou e realizou muitas coisas positivas para o povo indígena”, ele disse. Mas quando ele começou a perder força, acrescentou von Vacano, “reagrupou sua base indígena com a retórica das distinções raciais, que agora polarizou a maior pare do país”.

Enquanto Morales esteve no cargo, o número de representantes indígenas cresceu. Ele redistribuiu o gás natural abundante do país para as comunidades nativas, e liderou o renascimento da cozinha, da música, do vestuário tradicional. Introduziu uma bandeira multicolorida representando os diversos grupos nativos, e a elegeu a bandeira oficial, ao lado da bandeira tradicional da era da Independência, vermelha, verde e amarela.

Estas medidas o tornaram um ídolo das principais comunidades indígenas bolivianas, os Quechua e os Aymara, que constituem cerca de um terço da população adulta do país. Mas também alimentaram o ressentimento de muitos bolivianos de sangue misto ou europeu, bem como de grupos indígenas menores, que acusaram Morales de favoritismo étnico. A porcentagem de bolivianos que se identificam como membros de grupos indígenas caiu para  41% no último recenseamento, em 2012, em comparação com 62% dez anos antes.

“O racismo existe na Bolívia, existia antes de Evo, e jamais desaparecerá”, afirmou Michelle Kiefer, corretora de seguros na capital administrativa do país, La Paz. “Embora Evo tenha começado uma importante discussão, ele também manipulou a questão da raça, e isso causou a desunião. E agora pessoas de raças diferentes olham umas para as outras com desconfiança”.

No protesto em Cochabamba, muitos carregavam armas caseiras e escudos, prevendo um ataque da polícia. “Eles queimaram a nossa bandeira; riram da nossa cultura”, disse Alfonso Coque, um produtor de coca. “Isto é racismo; é discriminação. Nós daremos a nossa vida pelos nossos direitos”.

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