A Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo funciona, desde a sua fundação em 1827, no mesmo prédio situado no Largo de São Francisco. Seus alunos e professores a ele só se referem como “As Arcadas”, em alusão ao estilo arquitetônico do edifício, que guarda ainda o ar senhorial da época da criação. No interior, vitrais e mobiliário dão ao visitante a ideia de que foram transportados ao primeiro Império. De tudo exala um ar de tradição e respeito, apesar das bermudas e sandálias dos estudantes que, embora orgulhosos de o serem, não resistiram à modernidade dos ipods e ipads.

Na parede da Sala da Congregação, um enorme fac-símile do decreto imperial que autorizou a criação dos cursos de formação “em sciencias jurídicas e sociaes”, nas cidades de São Paulo e Olinda, tendo ao fundo o imponente retrato de Sua Majestade Imperial, Dom Pedro I. Apesar de toda a vetustez, ali ainda se ministram normalmente as aulas do curso de direito, o que necessariamente se liga ao pensamento de por qual razão o prédio da Velha Jaqueira, em Manaus, foi abandonado e está prestes a ruir. Deixado ao léu, o edifício, que resume toda a memória do ensino jurídico local, é hoje objeto de meritória campanha, liderada pelo doutor Júlio Antônio Lopes, significativamente intitulada “Salve a Velha Jaqueira”.

Pois muito que bem. Na segunda-feira, 18, entramos, minha mulher e eu, na veneranda construção do Largo de São Francisco. Fomos assistir a um fato memorável para a família: naquela tarde, nosso filho Luís Carlos defendeu sua tese de doutoramento, com o título “O Direito Penal da Guerra Contra as Drogas”. Na banca, o presidente e orientador, o doutor Sérgio Salomão Shecara, os doutores Alamiro Velludo Salvador Netto e Ana Elisa Liberatore Silva Becharada, dos quadros da USP, além dos doutores Silbesterr Patxi Xabier Arana Berastegui, da Espanha, e Gottfried Sebastian Scheerer, da Alemanha. O ambiente não podia ser mais erudito.

A tese é um volume de 510 páginas. Seu autor desenvolveu memorável pesquisa histórica sobre as origens internacionais dos mecanismos de criminalização do uso e comércio de todas as drogas, revelando interesses subalternos que sustentaram posições oficiais. Com embasamento de insuspeitável rigor científico, a partir, principalmente, dos ensinamentos de Marx, demonstra os efeitos deletérios que a postura policialesca no enfrentamento do assunto tem causado em todo o universo e, em particular, no Brasil, onde os níveis de encarceramento têm alcançado proporções gigantescas. É um libelo contra a visão reducionista de juristas e legisladores, que continuam a se ater a conceitos abstratos e insustentáveis como o de “ofensa à saúde pública”. Tudo em detrimento da percepção de que uso e comércio de drogas são fatos sociais, inerentes à própria convivência humana, de tal sorte que não podem ser arbitrariamente tratados como meros “casos de polícia”.

Pela sistemática dos trabalhos observada em ocasiões que tais, cada examinador dispunha de trinta minutos para tecer suas considerações, críticas e/ou elogios sobre a tese, concedendo-se, imediatamente após, igual tempo ao candidato para a resposta. Que espetáculo intelectual deslumbrante! Cada arguição era uma aula. Cada resposta, uma conferência. Pouco antes do início, disse-me o Caco (é assim que chamamos o novo doutor): “Pai, estou uma pilha”. Com o passar da tarde, essa pilha se mostrou carregada de sabedoria e tranquilidade, revelando, com invulgar brilhantismo, um profundo conhecimento do tema e uma admirável visão científica.

Na plateia, apesar das minhas eventuais ausências para o cigarro, éramos todos só atenção, respeito e orgulho. O irmão Alfredo, os filhos Bruna e Luís Carlos, conosco viam embevecidos a chegada ao ápice de um trabalho que durou longos seis anos de dedicação, perseverança e mesmo renúncias, estas expressas no desabafo do autor e perfeitamente compreendidas pela Micaela.

Eram mais de sete da noite quando o presidente da banca determinou a reabertura das portas, uma vez encerrada a sessão secreta em que ocorreu a deliberação final. Depois de um pronunciamento, tão belo quanto conciso, o doutor Sérgio Salomão Shecara fez o anúncio solene: “O candidato está aprovado”. E adiantou: “Apesar de a Universidade ter determinado que as bancas não confiram notas, limitando-se a afirmar ou não a aprovação, esta banca especificamente, tendo em vista o brilhantismo do trabalho, resolveu acrescentar à ata o “cum laude”. Está encerrada a sessão”.

Aplaudimos, vibramos e (por que não confessar?) choramos. Caco era Doutor. E “com louvor”. Valeu a pena, meu filho. O pouco que, a ti e a teus irmãos, pudemos ensinar, tu conseguiste engrandecer e perpetuar, através do estudo afincado e de honrosa dedicação. Beijo-te com todo o carinho do mundo, doutor Luís Carlos Honório de Valois Coelho. Beijo-te com todo o amor do universo, meu Caco querido.

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