Felix Valois

Se o Lula é a pessoa mais honesta do Brasil, tenho a impressão de que minha memória começou a falhar pois não me recordo de que qualquer das minhas avós tivesse duas rodas e um guidão. Na verdade, acho que “o alemão” ainda não me atacou, o que me impõe a cartesiana conclusão de que, tanto quanto as velhinhas não eram bicicletas, o ex-presidente está longe de ocupar o primeiro lugar no pódio da honestidade. Nem em sonho. O mar de corrupção em que se envolveram ele e o seu partido rompeu as barreiras do mais elementar bom senso e invadiu a Nação brasileira de forma tsunâmica.

Não estou nem um pouco de acordo com os métodos empregados nessa tal Operação Lava Jato. Direitos fundamentais têm sido postergados, privilegiando-se uma ânsia punitiva. Mesmo que esse comportamento antijurídico encontre aplausos na maioria, talvez, da população, nem por isso deixa de ser ameaçador a longo prazo, na medida em que, quebrado o sistema de garantias em apenas um caso, ninguém, absolutamente ninguém, pode se sentir seguro contra as arbitrariedades do estado-acusador e do estado-juiz. Lembremo-nos da ditadura militar.

Parece-me, entretanto, certo que, sem embargo dos defeitos de forma, a apuração dos delitos de que cuida o processo pôs a nu um acintoso esquema de corrupção que, calcado na anciã prática mensaleira, estendeu suas garras por quase todo o organismo nacional. A Petrobrás foi o berço onde se embalou o monstrengo. Bem alimentado e protegido, cresceu, ganhou força e ímpeto, passando a desdenhar de mais de duzentos milhões de brasileiros. Diz-se a boca pequena que é apenas um trailer e que a caixa preta do BNDES conteria coisas ainda mais assustadoras. Será possível?

Não duvido, mas não me compete especular. Espero só que, de forma tão matematicamente precisa quanto possível, o Brasil possa resolver essa equação, punindo de maneira correta quem mereça ser punido e colocando, ao final, o famoso Q.E.D. Se ainda não esqueci totalmente as aulas da professora Iza Brito, no Instituto de Educação, trata-se das iniciais da expressão latina “quod erat demonstrandum”, equivalente, em vernáculo, a “como queremos demonstrar”, significando que a equação teve desenvolvimento e solução racionais.

É o mínimo a que podemos aspirar. Mas, insisto, sem qualquer ofensa à Constituição, que não pode ser violada sob nenhum pretexto. Do contrário, como já disse, coloca-se em risco a integridade dos direitos e garantias fundamentais, além de se incrementar a possibilidade da prática de erros judiciários, os quais, infelizmente, não são tão raros como seria de esperar.

Ocupo-me de um deles nesta segunda parte do texto. É um fato aterrorizante e foi publicado no jornal O Globo, em edição nacional do dia 26, terça-feira desta semana. Transcrevo: “Para Héberson Lima, de 34 anos, o tempo em que esteve na prisão levou não apenas dois anos e sete meses, mas também tomou dele trabalho, saúde, a família e a vontade de viver. O então auxiliar de serviços foi preso em 2003, ao ser acusado por um vizinho de estuprar uma criança de 9 anos em Manaus. No cárcere, ele foi violentado e adquiriu HIV”.

Parece corriqueira inserção de páginas policiais. E seria, não fora pela monstruosidade do engano e por suas trágicas consequências. Segue o jornal: “Uma década após ser solto, o amazonense ainda tenta que os danos que sofreu sejam reparados. Depois da prisão, ele perdeu o emprego, separou-se da mulher e teve de se submeter a tratamento para o HIV. Entre idas e vindas de processos pedindo indenização, ele agora aguarda o desfecho de ação em que solicita R$ 150 mil do Estado em favor dos dois filhos de 13 e 15 anos”.

A reportagem conclui com o seguinte trecho: “A prisão só me trouxe desgraça. Ficávamos amontoados e os presos se maltratavam. Eu achava que ia sair, mas passou o primeiro ano, o segundo ano e eu fiquei esperando. Pensei em suicídio – lembra Héberson: — “Hoje, sou doente e não tenho vontade de viver. Trabalho fazendo bico, um pouco aqui e ali. Mas nem esforço físico eu posso fazer”. Ao ser questionado sobre a expectativa em ainda receber ressarcimento pela prisão, ele dispara: – A esperança é a última que morre, mas tomara que eu não morra antes dela”.

E por que isso tudo soa tão estarrecedor, já que todos conhecem, pelo menos de ouvir falar, a cruel realidade dos presídios brasileiros? Por uma simples razão: Héberson não cometeu crime nenhum. É isso mesmo. Foi preso e aniquilado por um crime que não cometeu. Deixei para o final a transcrição deste trecho da reportagem de O Globo. Aí vai: “O caso mudou de rumo apenas quando a defensora pública Ilmair Faria Siqueira constatou que, embora a vítima tivesse reconhecido Héberson, as feições descritas pela menina não coincidiam com as do acusado. Segundo seu relato inicial, o verdadeiro autor do crime era banguela, alto e “aloirado”, um perfil que definitivamente não era o de Héberson. – Quando o promotor viu o resultado da perícia sobre as características físicas, não teve opção, a não ser a absolvição – relata a defensora”.

Quanta crueldade! Mas, pelo menos, posso manifestar meu orgulho de ser amigo da doutora Ilmair Faria Siqueira. Sua conduta profissional só merece elogios e há de ser motivo de orgulho entre quantos exercem a advocacia criminal. Parabéns.

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